6 de dezembro de 2007

Ferraille Illustré (Requins Marteaux)


Há algo no riso que é incómodo. Trata-se de um preço. Ou melhor, de nos apercebemos de um preço.
Rimo-nos às expensas de qualquer coisa, as mais das vezes, de alguém que, naquele preciso momento, se torna inferior.
Podem ser as vítimas “do costume”, gajas velhos pretos estrangeiros paneleiros comunas fachos desportistas mongolóides beatos padrecas balofos carecas etcs. A escolha da nomenclatura jamais poderia ser cândida, pois a própria escolha do vocabulário pretende mediato ser, nada paradoxalmente, imposição de distância para melhor servir de pedra de arremesso. Não pretende ser inócua, essa escolha. Tem de se constituir um divórcio entre a inteligência e a sensibilidade e as percepções que poderão levar ao riso, é obrigatório, é imperativo. Rio-me de uma pessoa que acaba de morrer de uma forma atroz não porque a atrocidade dessa morte seja divertida em si, ou risível de qualquer forma, mas porque a circunstância em que me é mostrada me leva a esse absoluto desligar do que aquilo realmente é e, desprovido da capa humanizante que lhe seria possível, se tornam meros elementos flutuantes que me chegam enquanto anedota. Ferraille Illustré é a publicação regular da editora Requins Marteaux que segue um modo de edição proxíssimo fórmulas ditas clássicas da banda desenhada franco-belga, pré-publicando-se episódios de histórias maiores (“continua...” de número para número), com outros gags de uma ou duas páginas, anúncios fictícios, editoriais humorísticos e criando uma primeira meta-linguagem sobre a própria publicação, secções noticiosas (música e outros livros de banda desenhada) em banda desenhada... Se bem que contenha uma imensa escolha e variadíssima de autores, estilos e propósitos, ela mergulha ainda numa outra tradição do seu espaço geográfico: a de revistas humorísticas e iconoclastas que conheceu um espectro tão grande como da Pilote à Écho des Savanes à Fluide Glacial, mas aumentando o volume da acidez através de um Vuillemin, por exemplo, o que nos leva a chegar a um tipo de humor que coteja todo o tipo de barbarismo social aventado acima – a misoginia, o racismo, a homofobia, o anti-comunismo, o anti-liberalismo, o anti-desportismo, o hooliganismo, o anti-religiosismo, e toda uma sorte de preconceitos para com todos os “outros”.

Há que explicitar, porém, que essas barricadas se erguem sobre o solo da ironia, absolutamente movediço, havendo assim espaço para todos “nós” nos encontremos mais tarde ou mais cedo do lado desses “outros”, ou em que esses actos atrozes se tornam um comentário a uma realidade anterior, iluminando o preconceito “invisível” aí existente, e tornando este (a obra presente) numa espécie de lupa de lente distorcida que endireita a imagem vista. Para que sejamos claros, eis um exemplo. No número 23 desta revista, há uma história de duas páginas de Emile Bravo (e Joann Sfar) intitulada Les Aventures de Swartz et Totenheimer, ainda com a indicação (“d’aprés les personnages d’Adolf Hitler”), que não é mais senão um pastiche (em termos de figuração, balonagem e letragem, composição de prancha, trama de cores a imitar uma quadricromia desusada) d’As Aventuras de Blake e Mortimer (até os nomes são pequenos jogos, Swartz correspondendo a Blake no seu sentido e grafia antigos de “preto” ou “pálido” ou “lívido” – uma clara associação à morte – e Totenheimer a Mortimer a partir da etimologia deste último “mar morto” ou “mar de águas paradas” para um nome em alemão que conjura igualmente a morte) de Jacobs. O desvio é que os heróis são, respectivamente, um oficial das SS e um médico num dos campos de concentração. O médico Totenheimer preocupa-se com a última leva de judeus, pois sendo estes últimos alemães, falam correctamente a sua língua, compreendem a cultura, estão “totalmente assimilados ao nosso meio cultural”. Por seu lado, Swartz procede à desmontagem dessa “ilusão”, chamando três judeus (figuralmente idênticos a Olrik, Septimus e Miloch), conseguindo-o e asseverando ao Doktor Totenheimer que se tratam de degenerados... Como se depreenderá, só tendo acesso ao pré-texto (Jacobs) é que nos aperceberemos do valor irónico e humorístico deste texto (Bravo), um exercício à la Oubapo. Caso contrário, simplesmente parecer-nos-ia um estranho caso de propaganda anti-semita atrasada, de mau-gosto, de uma total ofensa (o que pode não deixar de constituir, obviamente, se pertencermos ao grupo dos “outros” que é aqui visado negativamente). É este sempiterno movimento neste tipo de esferas – textos de facto de mau-gosto que perpetuam preconceitos atrozes mas que no fundo querem é parodiar esses mesmos preconceitos e tristes realidades – que encontro sistematicamente na esmagadora maioria dos trabalhos apresentados na Ferraille Illustré. A capa de Winschluss do número 24, aqui reproduzida, ilustra bem essa discrepância: à primeira vista parece um belo e inócuo idílio, mas um mais atento olhar aos pormenores revelarão a crueldade que mal se disfarça.

Em todo o caso, a tamanha diversidade que a revista apresenta proporciona toda uma sorte de prazeres culpados que encontrarão certamente os seus mais certeiros recipientes nos variados leitores, a que ela estejam dispostos a se entregar. Encontrar-se-á igualmente diversos estilos gráficos, desde os mais legíveis e visualmente benévolos de um Mathieu Sapin, F©, Winshluss, Druilhe, Micol, Morgan Navarro, Lucie Durbiano, Christophe Blain ou Blutch, às mais estilizadas presenças de Blex Bolex, Andréas Kündig e Pieter De Poortere, ou as linguagens aparentemente mais simples mas mais mordentes de artistas como Franky Ravi, Imius, Ludovic Debeurme ou a dupla Ruppert-Mulot. Mas há muitos mais artistas e esta construção de famílias visuais em nada explica o seu interior, desfazendo-se mais uma vez a falsa ideia de formas e conteúdos, preocupação constante para mim.
Para além desta breve e anódina lista, é curioso notar as prestações quase não-identificadas das bandas desenhadas de Morvandiu (quer a sua contínua Les Intérmaires de la Distribution quer os anúncios a que me referia acima, ambas formas de contornar o capitalismo pelo mais profundo mergulho na sua mentalidade nevrótica e espectacular), a secção de Vandermeuleun, com ou sem participações externas (uma delas de Frédéric Coché), que revisita toda a espécie de memórias das revistas desta natureza, a de Olivier Josso dedicado a uma comemoração musical variadíssima, os editoriais de Frankie Baloney (v. imagem), o qual se assume como a “personagem fantasma” de todo o gesto editorial e fonte de grande parte do humor que atravessa a revista... ou seja, que acaba por servir como o depositário e nascente de todos os preconceitos que ganham corpo nas histórias da revista.
A Requins Marteaux publica uma grande variedade de títulos, alguns dos quais nada tendo a ver com esta natureza de humor cáustico, algumas sendo bem pelo contrário obras de uma profunda seriedade – penso sobretudo nos livros de Philippe Squarzoni. Mas tal qual o ser-se sério não significa ser-se taciturno, também o facto de ser cáustico não significa ser-se-vazio: pode ser que magoe a este ou aquele leitor (se fizer parte dos tais “outros” criados pelo riso que distancia e difere), mas o seu fito é precisamente alertar para a possibilidade e perigo inerente a essa distanciação. Daí que o gesto da Ferraille Illustré envolva um preço forte, mas por isso mesmo que não nos importará pagar.

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