15 de outubro de 2007

Divide et Impera. Cinco autores da vanguarda da banda desenhada contemporânea.


Divide et Impera é o título de uma exposição integrada na 18ª edição do Festival Internacional de Banda Desenhada da Amadora. A convite do Festival, fui convidado para pensar uma exposição que se revelasse de algum interesse. Tendo em conta que o tema do FIBDA deste ano era a "maioridade", fico surpreendido quer pela natureza do cartaz quer pelo tom geral das exposições deste ano, que apenas a título de excepção parecem corresponder a esse tema (o livro Salazar, de JP Cotrim e M Rocha, toca esse ponto; a exposição das bandas desenhadas porno-eróticas de Manara, Serpieri e afins, não).


Sendo, julgo, bastante clara através da leitura deste blog a ideia que tenho de que um dos caminhos mais acertados e sólidos para a "maioridade" da banda desenhada é a sua discussão balizada, inteligente e alerta para todas as consequências a que o pensamento leva, e não somente a atitudes encomiásticas e epidérmicas, mascaradas de nostalgia ou de outros aromas, não surpreenderá que o ponto de convergência entre estes autores não seja o costumeiro (país, tema, novidade editorial, etc.) mas um conceito teórico. Dado o espaço que me é reservado no catálogo, o texto elaborado não é suficientemente grande, mas julgo conter todas as pistas para o desvendamento do seu sentido, assim como uma breve apresentação dos artistas envolvidos. É esse texto que deixo aqui à vossa consideração, e aberto às vossas questões.


Gostaria de deixar aqui o meu agradecimento público às seguintes pessoas: ao Nelson Dona, pelo convite e "carta branca", que muito apreciei; ao meu amigo António Gomes, do atelier de design Barbara Says..., que apresentou não só um excelente desenho de exposição como uma perfeita sintonia com os meus desejos pouco pragmáticos e nefelibatas; à Ana Taipas e Raquel Melo e equipa, por tornarem essas ideias e desejos num espaço real; à Lígia Macedo, por saber agarrar as mil e uma ponta desfiadas que eu ia atirando; à Sara Figueiredo Costa, pelas concordâncias; a toda a equipa do FIDBA, pelos poderes de prestidigitação; à Corinne Saulneron, por ajudar ao comércio destes autores (passem na sua banca, onde encontrarão o material de alguns destes artistas); aos cúmplices do costume e que sempre ajudaram em tudo, mesmo que não o saibam; e, claro, ao Fábio, Warren, Ilan, Aerim e Frédéric, por terem aceite o convite, entusiastas, e providenciarem trabalhos que nos permitem ler mais que o costume.


Sob o signo da Desagregação.


É algo banal notarmos a aceleração do mundo, e em tudo o que ele contém. Não será tão displicente notar como essa aceleração leva a alterações substanciais no modo como narramos ou procuramos narrar as coisas do mundo.
Num dos seus mais iluminados ensaios, “O Narrador” (Der Erzähler, de 1936, de que também existe uma tradução de Miguel Tamen como “O Contador de Histórias”), Walter Benjamin estabelece uma oposição entre a narrativa oral e o romance. A primeira associar-se-á a uma partilha presencial entre o narrador e o seu ouvinte (é “do âmbito do discurso vivo”, isto é, à experiência de ambos), ao acto de contar histórias, à moral da história que por sua vez se relacionará com a tradição em que se insere o contado. O segundo implica antes uma confusão de duas experiências individuais e isoladas, a do escritor e a do leitor, “com-fusão” dada no espaço do objecto-livro (ou o que o substitua), exige antes um “sentido da vida”, já que o romance, o texto literário, acabado, fará emergir um todo, um fim que se explica e explica. Benjamin fala de uma desagregação, uma separação da “unidade original da reminiscência”, cindindo-se, por um lado, numa “memória imortalizadora do romancista”, a recordação, e, por outro, “a memória breve do narrador”, a memória propriamente dita, breve porque associada a uma acção una, a outra dispersando-se sobre “muitos acontecimentos dispersos”. Benjamin recorre a Lukács, citando-o no seguinte: “Só no romance surge uma reminiscência criadora que atinge o objecto e o transforma”.
“Cada vez menos encontramos pessoas com a capacidade de contar uma história como deve ser”. Esta é a frase mais famosa deste ensaio. Benjamin alude à tradição oral referida, considerando-a paulatinamente substituída por uma nova forma de narrar, um pouco como quando se referira à aura no círculo das artes visuais notara a deslocação de um valor cultual das antigas obras de arte para a de um valor de exposição das modernas. Também aí ecoa esta passagem de uma partilha comum mesmo que momentânea de experiências para uma bem mais estreita entrega do indivíduo à obra em questão. Se ocorrem contemporaneamente problemas de representação, de silêncios, de desfigurações das memórias e das tradições, tal não se deverá somente ou redutoramente a uma diminuição da experiência transmissível ou da comunicabilidade da experiência, como Benjamin aponta no mesmo ensaio, mas ao facto de tornar-se agora cada vez mais possível essa fusão entre o criador e o fruidor da sua obra no momento da fruição, ou por outras palavras, uma verdadeira comunicação no acto do fazer dizer.
A banda desenhada não abdica, ou raramente o faz, do seu programa narrativo, do seu hábito de contar estórias. Para mais, estórias passíveis de ser partilhadas, num “imaginário comum”, numa “tradição”, até mesmo numa “normatividade”. Mas ela não tem necessariamente nem de o fazer sempre nem de o fazer sempre da mesma maneira. A aceleração da diversidade de experiências, da fragmentação da reminiscência em variados objectos-de-leitura-e-interpretação-individual, e dos modos de narrar aumentam também o grau de desagregação acessível aos autores de banda desenhada contemporânea, que a empregarão de maneiras diferentes.
Entrada. Os autores que se reúnem nesta exposição aproximam-se não por aspectos superficiais de estilo ou de temas, muito menos por critérios políticos como a nacionalidade ou outros. O que os une é um princípio abstracto, conceptual, teórico: o da desagregação. Cada um a seu modo, os cinco autores que aqui se apresentam optam pela criação de textos de banda desenhada na qual está presente a aplicação da desagregação sobre um ou mais dos elementos correntes da banda desenhada, tão correntes que quase passam por “essenciais”, “necessários”, “normais”. A sua total ausência ou transformação profunda, do dado elemento, destas obras em particular, demonstra como a banda desenhada, enquanto modo de expressão, objecto cultural e/ou texto a decifrar resiste na sua existência a essa experiência.
A desagregação é um movimento de separação perante algo que se agregara antes. Não se trata de um movimento antes ou aquém de, mas depois de um facto, para além de uma realidade. A banda desenhada existe numa inércia que caracterizámos sucintamente acima, e estes autores, cada um a seu modo, de novo, retiram um desses elementos “naturais”, passando a ser a ausência, a falta desse mesmo elemento, a força que emerge nas suas obras e, assim, de uma maneira outra de fazer banda desenhada.
Apresentações.



Ilan Manouach (Atenas, Grécia, 1980)
Ilan Manouach é músico e artista e banda desenhista. É tentador encontrar em todas as suas actividades, na sua própria multidisciplinaridade, e nas especificidades de cada trabalho, factores que permitam repensar cada uma dessas actividades enquanto interdisciplinares. Mantenhamo-nos apenas num território: o da banda desenhada. E afunilemos a sua produção a três obras, seleccionadas para esta exposição, em detrimento das suas primeiras aproximações mais narrativas, outras mais oubapianas, outras mais próximas da colagem e citação directa. La Mort du Cycliste e Frag (dois livros pela Cinquième Couche, o segundo ainda no prelo), juntamente com a pequena história The Ten Stages of Spiritual Cow-Herding publicada na Éprouvette no. 3, pela L’Association (baseada num conhecidíssimo koan, zen e/ou taoista, usualmente acompanhado por imagens, mas alterada de acordo com sólidos princípios criativo-teóricos: “le dépassement de la critique”, nas palavras do autor). Nestas três obras, ainda que de modos figuralmente diferentes, temos sempre a presença da morte. É árdua a leitura que nos espera nestas três obras, justamente porque resiste a, ou impede, uma leitura linear e de desvendamento de um sentido, único. Queremos atribuir a presença da morte ou da personagem-morte nessas obras como a da confirmação do determinismo causal regular das bandas desenhadas, encerrando os seus elementos presente numa “história com princípio, meio e fim”, “com pés e cabeça”, para descobrir que na verdade, não obstante a apresentação física do livro e de uma sequência determinada por sub-elementos regularizados (espaços recorrentes, existência de protagonistas, progressão de uma metamorfose interna ao livro, sobretudo em Frag), estamos perante imagens que se abrem a toda uma multiplicidade de cruzamentos e cujas releituras sucessivas nos ajudarão a chegar a esta conclusão: aqui, nestas fiadas de imagens, há produção de sentido (“significados”) em todos os sentidos (“direcção”). A desagregação, em Ilan Manouach, não é mais do que uma ilusão, operada sobre as nossas expectativas de normalidade – para a qual a esmagadora produção da banda desenhada nos “treinou”, nos “habituou”; porém, abre-se-nos como espaço de reintegração da experiência individual, “con-fundida”, entre autor e leitor. [o autor estará presente no Festival; dia 20 de Outubro, às 15h30, estará no painel de conferências 'Caminhos da BD contemporânea I'].

Warren Craghead III (Virgínia, EUA, 1970)
O artista norte-americano elabora criações gráficas e plásticas sob as mais diversas formas e plataformas. Não há diferença no seu acto criativo, senão em termos disciplinares que nós, espectadores mais ou menos críticos, posteriormente lançamos sobre ele, entre as “bandas desenhadas” e outras produções. No interior do que se pode entender como o “nosso” território, também Craghead prima pela diversidade – de estilos, aproximações, modos. A selecção presente incide, contudo, sobretudo numa aproximação muito particular que o artista tem, não apenas “experimentado” (como se a ela não pudesse jamais retornar), mas consolidado ao longo dos anos: Jefferson Forest, Thickets, uma pequena história na antologia SPX, e sobretudo How to be Everywhere, livro-catálogo de trabalhos baseados na poesia e caligramas de Apollinaire, os quais podem tanto ser desfrutados singularmente, como em sequência, como ainda enquanto um todo coeso. O que provoca uma sensação de comunidade entre estes trabalhos é a constante fragmentação da figura e da frase, quebrados nos seus elementos ou componentes: no caso das palavras, facilmente identificáveis enquanto o seu material gráfico, as letras; no caso das imagens, conforme as escolhas, “excertos”, “troços”, “bocados” da coisa representada – sempre identificável, não obstante a sua quebra (que não é da ordem da fragmentação já natural da vinheta da banda desenhada, mas uma opção operada sobre o objecto abandonado na página quase livre). É como se a fragmentação já prevista na banda desenhada, mas raramente explorada enquanto potencialidade artística (referencie-se a fulminante primeira prancha de Zil Zelub, de Buzzelli), desabasse “para dentro” dos seus elementos constitutivos, permitindo a Craghead uma exploração “para fora”, aliada à singularidade do seu leitor, capaz de fruir essa desagregação através do seu trabalho contrário, de re-construção de um ou mais sentidos. [o autor estará presente no Festival; dia 27, às 17h, estará no painel de conferências 'Caminhos da BD contemporânea II'].

Fábio Zimbres (São Paulo, Brasil, 1960)
Frase-chavão necessária: “Num mundo perfeito, Zimbres dispensaria apresentações”. Zimbres é um novo veterano, cultor de um trabalho extremamente diversificado, que se espalha por praticamente todas as grandes revistas de “quadrinhos” do Brasil, desde a Chiclete com Banana, o fanzine Mau no interior da revista Animal, à mais recente e excelente Front, e muitas, muitas outras publicações, e passando ainda pela ilustração, sendo o livro de Blaise Cendrars, Las Aventuras de mis Siete Tios, editado pela magnífica Media Vaca, o mais famoso entre nós. Além disso, tem outros trabalhos na área criativa.
Dentro de uma onda que avassalou o mundo com a aproximação de uma linha nervosa devedora, se não em termos de elementos estilísticos, pelo menos da verve e da liberdade assanhada do punk (de que Gary Panter, Pakito Bolino e mais recentemente a trupe de Paper Rad e Fort Thunder, muito beberam), Zimbres oscila entre histórias legíveis – isto é, com todos os elementos diegéticos mais expectáveis da banda desenhada – e outros objectos onde as fronteiras da narrativa se podem diluir numa outra leitura mais poética – como no caso de pequena história a cores que fez para a antologia norte-america Rosetta ou o trabalho de colaboração que desenvolveu com a banda rock Mechanics para o álbum/livro Música para Antropomorfos. A uma primeira abordagem superficial, entenderemos que as suas figuras parecem inscrever-se numa linha que sai da imensa tradição das criaturas dóceis, de traços suaves, do Triunvirato Disney-Harvey-Maurício (de grande presença no Brasil nos anos 70 e 80), mas para, com a aceleração da estranheza e dispersão temática – tente fechar-se a obra de Zimbres em “temas recorrentes” e falhar-se-á, a menos que se entendam as forças abstractas que a unem -, torná-las como que exaustas dessa docilidade e mergulhá-las no cansaço físico do gesto artístico. E é nesse momento que se desfibra a patina da razão, ensonada, para se abrir caminho aos monstros da desagregação. [o autor estará presente no Festival; dia 27, às 17h, estará no painel de conferências 'Caminhos da BD contemporânea II'].

Lee, Ae-rim (Seul, Coreia do Sul, 1973)
Esta artista é conhecida no seu país pelo seu nome artístico de “Rainbow”. Sendo a cena sul-coreana uma das que mais tem conhecido não só um crescimento exponencial interno mas também uma exportação considerável (graças a editoras francesas, americanas e brasileiras), é necessário reter que qualquer crescimento dos produtos mais comerciáveis representam sempre um ecrã de impedimento de visibilidade a outros objectos mais estranhos, mais idiossincráticos e, as mais das vezes, mais artisticamente coesos. A esmagadora maioria dos seus trabalhos é constituída por páginas singulares, que revêem os conceitos de cartoon, ilustração e banda desenhada: fazendo convergir um sentido de design reminiscente do psicadelismo, uma grande atenção para as culturas urbanas do mundo, onde há espaço para uma dúvida ou uma indiferenciação em relação aos papéis sexuais (repare-se novamente no nom de plume), sociais e políticos das personagens – o que não é de somenos numa sociedade tão hierarquizada e de lenta dissolução das barreiras como é a sul-coreana – e uma claríssima revisitação dos imaginários infantis para uma plataforma mais adulta, negra e de moralidades dúbias, olhar as suas imagens sem ordem aparente leva-nos a querer construir múltiplas instâncias narrativas, associando as personagens que se parecem repetir (e que efectivamente se repetem, já que Lee, Ae-rim não desenha sobre papel, mas constrói as suas pranchas no computador, muitas vezes reutilizando materiais previamente empregues, destruindo também ela o culto da “arte original”) de modos diferentes, em funções díspares, colocando-as em situações contraditórias. É aí que reside a desagregação de Lee, no papel expectável de funcionalidade das suas personagens, que se tornam verdadeiras personas.
A maior parte dos seus trabalhos surgem em antologias alternativas locais, revistas de cultura urbana, mas os seus trabalhos estiveram já também em Angoulême, quando a Coreia foi o país convidado. Ainda não se reuniu em volume a sua obra. Ainda. [A artista não estará presente no Festival]

Frédéric Coché (Paris, França, 1975)
Os livros de Coché não são propriamente de banda desenhada. Os seus trabalhos são sempre fruto de variadas técnicas de gravura, sobretudo águas-fortes. Tendo três livros publicados (Hortus Sanitatis, pela Fréon, Vie et mort du héros triomphante, pela Frémok, e Ars Simia Naturae, pela Oeil du Serpent), e muitos outros trabalhos curtos publicados pelas mais variadíssimas publicações europeias, Coché parece concentrar-se num modo muito particular de construir as suas narrativas, que passa precisamente por um trabalho de desagregação (isto é, de redução a elementos mínimos discretos que depois recombina a seu bel-prazer) daquela realidade a que damos o nome de “memória colectiva”. A revisitação da História e da História de Arte serve como fonte de engramas, isto é, de formas discretas e únicas reconhecíveis por um largo espectro do público (sob a forma de “obras de arte eternas” ou de “funções actanciais universais”), mas que Coché coloca num espaço relativamente fechado – as suas obras. Ou melhor, colocando-as num espaço onde os signos identificáveis são finitos, as pranchas e os seus elementos figurais, as ligações que eles prometem e permitem com a memória colectiva fazem com que se abram para um campo infinito de interpretações e significados, conforme as potencialidades associativas dos seus leitores/espectadores, tornando estas imagens (mas jamais descurando as suas relações narrativas internas a cada obra) verdadeiramente palcos da recordação objectual e valor de exposição asseveradas por Benjamin, conforme explicado acima. [o autor estará presente no Festival; dia 3 de Novembro, às 18h, estará no painel de conferências 'Caminhos da BD contemporânea III'].




7 de outubro de 2007

Birmanie. La Peur est une habitude. AAVV (Khiasma)


A oportunidade parece exacta, a coincidência óptima. Mas Birmanie. La Peur est un Habitude foi publicado em 2003, revelando que a sua preocupação não é de agora, apesar de um mais global despertar para a mesma o é. Livro sobre a violação de um princípio, que mais do que “da democracia”, “da liberdade”, “da opção”, “dos direitos”, é antes de mais a um princípio mesmo de se ser ou de se poder ser. Porque a Dita Dura (para aproveitar um título do José Palomo Fuentes) é, como a própria origem da palavra o demonstra, uma exacerbação do poder do dizer (dicere, dictare), um dizer que se torna tão poderoso que é apenas esse dizer (duro, inflexível, intransigente,) que dá e tira o direito à existência. A linguagem torna-se assim um veículo dessa operação/opressão, facto apercebido de uma maneira plástica por Sylvain Victor, que anima a escrita birmanesa em veículos de morte, dentro dos parâmetros da qual “não há escolha”.

Tanta possibilidade retira esse dizer à existência livre, que a única fímbria de total liberdade individual que resta – e isto aconteceu em Portugal, de que restam ainda hoje resquícios – se cinge ao medo, um medo que se torna hábito. A segunda parte do título deste projecto poderia assim ser ofertado a qualquer circunstância de ditadura, praticamente.
Mas se o medo é um hábito, então qualquer gesto que o ultrapasse, a mera possibilidade de dizer qualquer coisa que não o permitido existir pela ditadura tem de ser um acto de coragem assombroso. Dizê-lo é já uma vitória de resistência. Dizê-lo assumirá várias formas, modos, qualidades, seguramente. Todavia, como ler um acto de resistência face a uma realidade com os olhos famintos pela esfera do “belo fazer” e do “belo dizer”? Não é que o assunto, o tema, o objecto de atenção ganhe algum contorno impenetrável a uma leitura interpretativa e crítica. Essa seria uma confissão de fraqueza própria, pois dizermos que algo é “indescritível”, “incomunicável”, ou que em relação a esse algo “nos faltam as palavras”, não é uma indicação da coisa em si, mas de uma falha nossa em (re)contruir a relação que com ela estabelecemos através de laços de palavras, de uma incapacidade nossa em comunicar essa primeira e existente relação.
Todavia, existem construções de natureza artística – mesmo que a reduzamos aqui ao seu sentido de “técnica” – que, reportando-se a temas precisamente ou intimistas ou de uma pertença indelevelmente atribuída a um sector apartado (por movimento próprio ou alheio) da humanidade, parecem querer deslizar para fora do discurso crítico, ou de um possível discurso crítico. Os primeiros rondam obras que versam as experiências mais pessoais, os relacionamentos humanos mais intransmissíveis, os pecados mais internos do seu “confessor”. Mergulham, estes, num campo a que querem chamar de “realidade”, à qual não parecem ser aplicáveis instrumentos de apreciação crítica que revelem de algum formalismo, de integrações num fluxo de tradições que lhes é externo em termos de experiência directa, de uma mera deslocação de sentidos. Por exemplo, o filme Tarnation, de Jonathan Caouette, cai nessa categoria: como posso dizer “é melodramático?” ou “existem interdependências abusivas que arruínam o crescendo narrativo?”, quando todo o material que compõe o filme é de “documentos reais”? Notar-se-á a fraqueza do argumento, indefensável, pois por sobre o factor do suposto “real” elaborou-se a marca da construção, da estruturação, da mise en scène que o autor (já não experienciador) optou seguir. E toda a história específica da autobiografia de banda desenhada faz-nos encontrar todo um espectro de qualidades flutuantes, recorrentes, ou níveis de proficiência estética que, sendo repetíveis, não são nem contínuos nem herdáveis. Quando ao segundo grupo de temas, os que constituem a herança de um grupo específico, tratam-se de todas as histórias dos sofrimentos ou traumas “nacionais” ou “étnicos” ou quejandos. O exemplo máximo – não por qualquer mensurabilidade da dor, mas precisamente pela construção de discursos em torno de – é obviamente a Shoah. As discussões em torno deste tema são inúmeras, infindáveis e extremamente controversas. A discussão que opôs um filme, e as atitudes que ele comporta, como Shoah, de Claude Lanzmann (cuja característica mais marcante é não ter quaisquer imagens de arquivo e construir-se com testemunhos de sobreviventes; o que leva à ideia de “irrepresentabilidade”, ou pior, de “inimaginabilidade”), e o estudo em torno das fotografias dos Sonderkommando tiradas nos campos de concentração por Didi-Huberman (em Images malgré tout) é uma das mais relevantes facetas dessa impossibilidade de distância. Mais, A Lista de Schindler, de Steve Spielberg, viria trazer outros pontos de contenção. Sendo todos radicalmente diferentes uns dos outros, estes textos, lançam todos eles profundos problemas sobre a representação de comunicabilidade do evento em si, daquela matéria elusiva que parece estar para além da sua mera descrição (o seu contorno actual) e, se calhar, até da sua própria vivência. De novo, independentemente do grau da experiência havida, ela parece escapar-se à capacidade racional da descrição verbal, às palavras, à razão. É o horror.
O horror de cada um a cada um pertence, e já antes faláramos aqui do grau de comunicabilidade e de transmissão dessa experiência. Cada um entende a sua como uma dor única, e não é errado assim a considerar. Todo o mundo é composto de unicidades lutando pela sua autonomia, conseguindo-o em maior ou menor grau.
A Birmânia – retornar ao nome colonialista servirá de resistência ao SPDC? - vive um momento que talvez venha a ser significativo no futuro. Encontra-se, neste momento presente, no centro das atenções e preocupações “humanitárias” das nações livres. Não há outro modo de o dizer: está na moda. Porque há uma moda que pertence à distribuição da atenção mundial pelo sofrimento dos outros. E para que uma qualquer situação entre na moda, é preciso que existam alertas que tornem a distribuição cada vez mais próxima desse encontro. É quase natural que sejam as televisões, em todos os seus sentidos, desde o aparelho às cadeias internacionais ao seu valor etimológico, as que ganhem primazia nessa distribuição. Mas outros instrumentos existem. As mais das vezes, não é com força e individualismo que se desenvolvem as bandas desenhadas votadas, desde a sua génese, a um propósito qualquer, uma função. São legião as bandas desenhadas empregues à transmissão de um conhecimento, de informações, de conselhos, transmissão essa que é sua função principal, e não algo que decorre da naturalidade de serem veículos de signos e do mundo. Conteúdos políticos, campanhas da Amnistia Internacional, programas panfletários, nada disso é alheio a esta linguagem. Birmanie. La peur est une Habitude está no interior desse movimento, tratando-se de um projecto da Khiasma e Info Birmanie, que reúne testemunhos (témoignages é a palavra empregue, não deixando dúvidas) de vários birmaneses que viveram a ditadura militar, curtas bandas desenhadas de autores famosos que mostram, através das suas formas e modos, uma possível experiência dessa realidade, seja de forma externa (o turista, o voluntário, o repórter) seja interna (o guerrilheiro, o soldado, a refugiada), e vários anexos informativos (livros, sites, listas de organizações oficiais, não-governamentais ou outras dedicadas a este combate) que servem de continuidade da educação. As bandas desenhadas são de José Muñoz, Markus Huber (ambos numa colaboração com o escritor Frédéric Debomy), Olivier Bramanti, Olivier Marboeuf, Sylvain Victor (todos estes associados aos projectos da Amok/Frémok, de contornos políticos) e Séra (que também determina como seu espaço de trabalho a denúncia e o reparo de crimes).
Na banda desenhada de Debomy e Muñoz, há duas situações iluminadoras e que parecem explicar este gesto global, demonstrando ao mesmo tempo como a força estética, afinal despontando em textos “funcionais”, pode também se pode servir dos seus instrumentos próprios, aparentemente não implicados na vida do real, para o redesenhar, redizer: a primeira é uma citação de Aung San Suu Kyi, “Penso que será a sua [dos ditadores] própria estreiteza e limitações que os faz temer a amplitude do possível”; a segunda é a vinheta aqui mostrada, que contrapõem a limitação dos carrascos e esbirros através do desborde conceptual e formal, sublinhando-se onde se encontra a verdadeira resistência, já apontada acima: “há sempre qualquer coisa que extravasa”.
Quanto mais nos apercebemos que a fórmula “nunca mais” não funciona, e que os horrores, por mais incomparáveis que sejam entre si, por mais irrepetíveis que sejam nas suas características singulares, se sucedem de facto, experimentando atravessar novos limiares – em “pontos negros” do mundo, como Ruanda, Coreia do Norte, Arménia, Tchetchénia, Tamil Nadu, Cambodja, Curdistão, e agora mais visível, Myanmar/Birmânia – importa antes empregarmos os esforços e talentos no aumento da visibilidade e comunicabilidade do incomunicável e irrepresentável, para que essa realidade seja, cada vez mais, “sempre menos”.
Nota pessoal: quando entrei na Birmânia pela fronteira da Tailândia, e me demorei apenas um par de horas na cidade-mercado que me foi permitido visitar, tornou-se essa uma das experiências mais vexantes que jamais tive. Passear por entre a miséria com a segurança intrínseca do conforto para onde se pode retornar colocou-me por cima dos ombros uma capa de obscenidade que não sabia existir. Para mais, quando a vontade de proximidade e genuína simpatia existia da parte de algumas das pessoas com que me cruzei, que me passaram, gesto mínimo de afeição, a costumeira noz de areca enrolada na sua folha de bétel para mastigar, e tendo aceitado, acabaria por cuspir à primeira oportunidade, num canto, escondido. É como se tivesse recusado da pior maneira uma das formas de os conhecer. É dessa indizível vergonha que livros como este nos tentam redimir.
Nota: agradecimentos a Filipe Abranches, pelo empréstimo do livro.