19 de junho de 2007

The Black Diamond Detective Agency. Eddie Campbell (First Second)


De vez em quando os autores “descansam”.
A história (diegese) deste livro não tem muito que se lhe diga e uma mera sinopse revelaria toda a intriga e a resolução respectiva sem grandes comoções para com a estruturação do livro. Porque estamos aqui perante um conturbado thriller escrito por Gaby Mitchell (que, pelos vistos, escreveu o recente Blood Diamond, revelando alguma monomania em termos de títulos...), supostamente na forma de guião de cinema mas que foi “desviado” para uma sua adaptação em papel e aguarela por Eddie Campbell, depois de um convite do seu editor na First Second. Trama que mistura falsificadores de dinheiro e bombistas, conspirações internacionais, falsas acusações, um casal desfeito, do qual o homem busca uma redenção final. Dito isto, a prestação de Campbell cai naquela categoria de trabalhos a que se dá o nome de “competente”, ou seja, que vai ao encontro das intenções iniciais da história proposta. Terá feito as suas alterações, quer estruturais quer de apresentação, naturalmente, mas mantém-se na “grande aventura”. Pouco mais há a dizer. Tendo em conta os outros projectos de Campbell, o inevitável From Hell com Alan Moore, a contínua saga de auto-ficção de Alec, os pequenos hinos aos vinhos com Bacchus, e uma ou outra pequena história curiosa, como as que fez para os dois volumes de Bizarro Comics ou The Order of the Beasts (com o Batman), o presente The Black Diamond Detective Agency surge assim como uma espécie de descanso do artista, não em termos de trabalho propriamente dito – os desenhos, as aguarelas, a composição e paginação, etc. – mas numa linha de pulsão criacional, tornada mais “automática” por ter de actualizar somente, salvas as alterações já adivinhadas, os elementos diegéticos dispostos e delineados por Mitchell.
Mas há um pormenor no interior da diegese, um pequeno espelho (na análise literária ou artística dá-se o nome de “mise en abîme” a este reflexo interior do todo em que se insere) que relança uma outra questão sobre toda a acção de Campbell, até mesmo represando a sua relação com a história. A agência de detectives emprega os talentos de uma artista (fotógrafa e desenhadora) para que providencie um retrato-robot do suspeito principal, e de fotografias do terrível acidente. Quando ela discute uma dessas fotografias com um colega, descreve-a do seguinte modo: “Aproxima-te demais e deixa de haver qualquer objecto reconhecível. Afasta-te o suficiente e até poderia estar a mostrar a vida de insectos”, imediatamente perguntando, “Como é que se consegue colocar algo de tão terrível numa imagem?” (picture, no original). O talento de Sadie é colocado ao serviço mais vezes, e comentários sobre as suas potencialidades, sucessos e falhanços seguem no percalço. É como se o baixo contínuo sob ou por detrás da diegese principal fosse uma discussão – permanente nas obras de arte pela sua própria existência, e campo de preocupação particular de Campbell em alguns dos seus livros – em torno do desenho, da transmissão de imagens, e até mesmo das sensações, para além da visual, que ele e ela trazem ao espectador-leitor.
Apesar do “descanso”, esse pormenor embutido no thriller torna a “competência” de Campbell acima da linha d’água.

15 de junho de 2007

Uma comunidade de leitores para o VERBD.


Presumo que parte dos leitores deste blog estejam ao corrente de um outro meu projecto, a saber, o de uma série documental para a RTP2 sobre a banda desenhada contemporânea portuguesa. Se bem que esteja a versar de um modo geral sobre a "cena", é focalizado através das opiniões de vários intervenientes - críticos, investigadores, jornalistas, historiadores, editores e, acima de tudo, autores. Houve forçosamente um afunilamento dos autores, tendo-se feito uma selecção de onze autores, que nada teve de exclusivista ou de negativo em relação aos que não aparecem, pois ficaram "de fora" muitos dos meus autores pessoalmente favoritos... A razão prende-se em tentar dar, dentro da medida do possível, pois isto é para uma linguagem televisiva, um panorama actual, informado e equilibrado sobre a qualidade da banda desenhada portuguesa deste momento, que em nada nos envergonha se comparada com outros países.
A tempo útil, colocarei disponível publicamente um outro blog que dará conta de toda uma panóplia de informações, e abrir um espaço de discussão também, sobre este documentário. Nele, responderei a todas as questões que possam surgir. Gostaria, todavia, neste preciso momento, de interromper a regular leitura dos posts sobre outros livros e leituras para vos pedir ajuda e convidar a participar no documentário de uma forma concreta, simples, mas que penso poder dar uma imagem real da existência de uma comunidade de leitores (diversos e diversificados) de banda desenhada.
No último episódio, haverá um pequeno momento em que se incidirá sobre o facto de a banda desenhada, ao contrário da mais divulgada das percepções sociais, ser um campo diversificado quer na oferta quer na procura. Isso significa que há todo um mundo de leitores diferenciados. Nesse segmento, quer o realizador, Paulo Seabra, quer eu, pretendemos mostrar fotografias de pessoas a lerem livros de banda desenhada. Serão imagens necessariamente rápidas, substituídas rapidamente pela seguinte, mas que criarão a imagem geral dessa comunidade a que me referi.
Por isso, escolham o vosso livro (ou outro suporte, se possível) de banda desenhada preferido, o que mais vos marcou, o que mais vos obriga à releitura, o que já perdeu a capa por ter sido manuseado demasiado, etc. e fotografem-se (ou aos amigos e familiares, segundo a mesma ideia) a lê-los. Depois, enviem para pedrovmoura@gmail.com.
Nada de poses heróicas, cosplay ou (a)variações. É o acto de leitura que importa. Como se terão dado conta, a ideia é influenciada pela série de fotografias de André Kertész, On Reading, na qual surge apenas uma imagem de um leitor de banda desenhada, inevitavelmente de uma criança a ler pilhas de Sunday pages. Interessa-nos ter fotografias de pessoas de todas as idades, estatutos sociais e intelectuais, inclinações políticas, cores e paladares, desde que tenham na mão um objecto que flutue no interior dessa nebulosa a que damos o nome de "banda desenhada".
Obviamente, reservamo-nos ao direito de fazer uma triagem das imagens enviadas - pela sua qualidade, pertinência, etc.
Ficam os agradecimentos e um abraço comunitário.

14 de junho de 2007

A Invisibilidade do género feminino em Tintin. Ana Bravo (Chronos)


"O livro que se traz aqui à discussão é da autoria de Ana Bravo, investigadora com um currículo académico e profissional consolidado, mas que lhe acrescenta aqui uma incursão pelo domínio da banda desenhada através de uma Tese de Mestrado que conflui os discursos de desconstrução que emergiram graças ao feminismo, aos Gender e Women Studies, sobre a obra mais famosa de Hergé. A invisibilidade do género feminino em Tintin. A conspiração do silêncio quer colocar sob essa lupa de análise política o famoso “clássico” da banda desenhada. Enquanto o gesto em si é não só louvável como desejado na contínua construção de um discurso crítico no interior da banda desenhada, esta obra apresenta toda uma série de problemas que desejo aqui debater."
Este é o primeiro parágrafo de um longo artigo em que discuto esta tese e que espero venha ser editado no número de Julho/Agosto da revista Vértice. Podem aceder ao artigo, na íntegra, aqui.

Tintin and the Secret of Literature. Tom McCarthy (Granta)


É inevitável que seja a obra de Hergé aquela que, no espaço europeu, suscita uma cada vez maior crescente bibliografia. Quer pelas datas que se tornam em comemorações, quer pelo desenvolvimento de uma distância em relação à obra. Não obstante o desejo dos fãs e daqueles que leram Tintin num momento “dourado” das suas infâncias, essa série significará cada vez menos para os novos leitores da contemporaneidade. Torna-se assim uma das acepções de “clássico”, algo cujo momento de auge já passou e nos fala numa língua antiga. Mas essa distância permite que se abra um espaço de releitura. Seja pelo lado mais comercial, pelo de operações de cunho estético misturado com campanha de charme, como a exposição no Pompidou, ou, o que nos traz aqui, por leituras analíticas e críticas, de uma desconstrução forte e sopesar da obra. (Mais)

13 de junho de 2007

A Árvore que dava olhos. João Paulo Cotrim e Maria Keil (Calendário)


Não é que se deva começar uma história, uma ideia, uma oferta, um programa, seja o que for, enfim, pela negativa, mas a leitura de “contos infantis”, ao ser confrontada com a leitura de A Árvore que dava olhos, de João Paulo Cotrim com imagens de Maria Keil, leva à abertura de um espaço negativo nesse primeiro bloco, por onde se insere a grande positividade deste título particular.
Muitos dos “contos infantis” são escritos a partir do seguinte pressuposto: Sou um escritor adulto. Penso como um adulto. Quero escrever para crianças (uma noção abstracta de “criança”, ou que passa pelo modelo demasiado concreto de “o meu filho”, “o meu sobrinho”, etc.). Para escrever para crianças pensarei como uma criança. Mas, sempre, pensarei como um adulto pensa que uma criança pensa. Não como uma criança pensa.
O pressuposto seguinte, já existente em semente no anterior reza: a criança não pensa como um adulto. O que é quase dizer: a criança não pensa. Esta é (um)a grande falácia. O que se passa é que a criança não pensa como um adulto, mas o que isso quer dizer é que ainda não erigiu as dimensões mais socializadas da delimitação das associações, analogias, imagens, correspondências, possibilidades, dúvidas que fazem crescer a água na boca. Uma criança pergunta: “porque é que esta rua é a descer?” Um adulto sorri porque sabe que uma rua que desce também sobe, e que a lógica furada da criança acontece por inocência, falta de treino associativo, completude conceptual, lógica propriamente dita. Todavia, o adulto não está errado mas erra na explicação. A criança também apresenta uma cadeia de associações, mas à rua ligam-se as suas pernas, o modo como os joelhos dobram, a direcção e o esforço e, no fundo, aquela rua desce.
O invento do conto infantil recorre-se usualmente das explicações do mundo que se bebem em contos tradicionais, ou de soluções programáticas e logísticas para a salvação do mundo (livros que ensinam a separar o lixo, a tomar cuidado com o ambiente, a atravessar a estrada, a ler as cartilhas de direitos), ou de contos maravilhosos onde é o fogo-fátuo da maravilha superficial que pinta todo o trabalho narrativo e não a presença dúbia de uma ideia que se completa sem palavras. É raro surgirem contos que de facto despoletem esse espaço positivo, o de “podia ser assim”, como disse, no meio do rastro negativo do “deve ser assim”. São raros, mas não inexistentes. Os livros de Umberto Eco e Eugénio Carmi abriram um, o de Werner Holzwarth e Wolf Erlbruch abriu outro, António Torrado uma e outra vez (A Cadeira que sabe Música continua a ser um livro que deveria lançar a sua sombra sobre os demais), António Pocinho entreabriu-o, e João Paulo Cotrim consegue tantos outros. E como? Ou porquê? Ou de que modo?
Esquecendo as crianças. Retirando-as do alvo.
Quer dizer, afastando de um modo decisivo a noção de criança enquanto pequeno cidadão em formação que precisa da orientação daqueles que já sabem (mas se são os que já sabem quem colocou o mundo na situação que está, que direito têm de ensinar o contrário?). Ou a noção de criança enquanto pequena criatura que apenas é feita de inocência e que precisa de ser protegida do mundo terrível à sua volta e acalentada para um espaço que a deverá apequenar tanto quanto possível durante o maior tempo possível (como as bonsai, eternamente pequena, eternamente um objecto de beleza, mas também de tortura sobre o crescimento e impedimento da reprodução) É preciso que o conto seja literário na maior das suas condições: a de abrir um espaço de diálogo. E as crianças podem ser um dialogante vivo, inteligente e perspicaz sobre o mundo que os espera um pouco à frente.
A Árvore que dava olhos não tem história, nem moral, nem sequer uma estrutura narrativa que possa ser subjugada a um “tema” ou sequer “ideia”. Porque a ideia do livro (tal como noutros livros “infantis” de Cotrim) está contida a cada passo, é uma construção permanente mas ao mesmo tempo evanescente. A árvore-protagonista oscila entre a explicação do que é (“é assim”, “sou apenas uma árvore...”) e questões do que poderia ser (“posso ser...”, “vou ser...”, “podia”, “queria”, “vou crescer para isso”). Tanto apresenta uma ideia das virtualidades de todas as árvores como o constrangimento real a que elas se subjugam.
Os desenhos de Maria Keil seguem o mesmo percurso, em que arreda para fora do seu espaço a pirotecnia, ou uma noção chã de ilustração, e instaura a presença de uma série de desenhos em que cada pequena variação em torno da árvore corresponde às noções flutuantes nas palavras do conto. O despojamento e a simplicidade não têm necessariamente de passar pelo desassombro pelo mundo, e Maria Keil mostra um dos caminhos pelos quais o assombro se mantém nas imagens simples. Veja-se como as nuvens, o fogo do sol de Verão, os olhos, as cadeiras voadoras, os riscos do “céu inteiro”, como tudo isto fica preso aos ramos da árvore como pedaços de papagaios de papel ou ideias sem fio ficariam acidentalmente presos, despojos exteriores à árvore tornados frutos da mesma árvore. Uma analogia perfeita para o que significa uma “ideia transmitida”!