24 de fevereiro de 2006

Spaniel Rage. Vanessa Davis (Buenaventura Press)


É muito difícil não cair na tentação de dizer que este é um livro cuja banda desenhada partilha algo de um círculo a que se pode dar o nome de “feminino”... É um erro tremendo querer fechar os círculos, obviamente, sobretudo a partir de um dado biográfico do autor real, que não tem direito a contrair a leitura estética do texto que nos oferta. Ainda pior, recorrer ao sexo do autor para o dizer.
Mas quando me refiro a essa “feminilidade”, não falo de supostos “imaginários”, “temas recorrentes”, “preocupações”... Refiro-me, bem pelo contrário, a uma certa força directa em falar das relações, de pequenos detalhes que corroem a vida de todos os dias, uma obsessão pelo corpo, pelas erupções que teimam em surgir nele... Algo que raras vezes se vêem exploradas por artistas homens, mas cujos exemplos, poucos mesmo, bastariam por deitar a terra uma teoria de “temas divisos” entre sexos. Enquanto homens, também vivemos (fecho esta afirmação ao leitor masculino) obcecados pelos corpos, mas usualmente estes pertencem a outro, ou melhor, às outras, às mulheres (no caso de homossexuais, outros homens). As mulheres falam dos delas mesmas, das regras que lhes são impostas pelas sociedades, das regras que habitam os seus corpos, dos pêlos que nascem, das gorduras indesejadas já não se sabe bem porquê. Nestes campos, Vanessa Davis, nalguns pontos de Spaniel Rage (nome do seu site) sororiza-se com Phoebe Gloeckner (que a elogia), Julie Doucet, Marjane Satrapi, e, entre nós, com Isabel Carvalho, Ana Cortesão, Alice Geirinhas (até certo ponto), mas mais próxima ainda de Joana Figueiredo (do fanzine Na verdade, tenho 60 anos e participações na Mesinha de Cabeceira) e a Mulher-Bala (aguardem...).
Este livro está dividido em duas secções, a primeira apresentando folhas soltas de um sketchbook/diário gráfico, muito próximo do livro de Liz Prince. Não havendo verdadeiramente uma história unida, mas simplesmente a existência da protagonista – que, aliás, nunca é absolutamente claro se coincide com a autora, mas presume-se que sim, claro -, tratam-se de retratos dos pequenos proverbiais nadas que pontuaram esse dia e que farão, então, o valor existencial de Davis.
A segunda secção reúne quatro trabalhos mais clássicos de uma banda desenhada estruturada, mas que ainda giram em torno de pequenos episódios domésticos que, tornados centrais, se tornam o centro de pequenas epopeias das relações e do quotidiano. Estas histórias haviam sido publicadas anteriormente noutras antologia, entre as quais a pornográfica True Porn, onde vim a conhecer o trabalho de Vanessa Davis pela primeira vez. A autora prepara presentemente um novo volume, a sair no Verão de 2006.
Nota: agradecimentos a Vanessa Davis, pelas pequenas mas ilustrativas conversas. Posted by Picasa

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